Solidariedade: discurso versus ação?

Por Pedro César Batista

Foto de Wanessa Dias

A palavra solidariedade se tornou um clichê, sendo, pois, comum escutá-la nos diversos veículos de comunicação, em discursos de representantes dos mais variados segmentos: organizações da sociedade civil, dos partidos políticos, das entidades religiosas ou de órgãos governamentais. Nas universidades há estudos que buscam aprofundar o tema e as igrejas, independente da concepção, utilizam intensamente o termo.

Como um ativista, há mais de 30 anos, desde a adolescência no enfrentamento contra a ditadura e na luta pelos direitos humanos, falarei sobre esse uso repetido e proposital do vocábulo solidariedade que deveria ser transformado, de fato, em ação, em resultados na e pela construção de relações mais humanizadas na sociedade. Deixando, assim, de ser instrumento de manipulação que engorda contas bancárias, recheia bolsos e bolsas variadas e fortalece egos, após a descida de púlpitos.

Tempo(s) de caminhada

Na história da humanidade, os detentores das riquezas e do poder, notadamente, a partir da Idade Média, começaram a usar a caridade como forma de abrandar a culpa criada pela igreja para manter o controle das mentes, corpos e corações daqueles que seguiam ou não seus ensinamentos.

Mostram-nos os estudiosos do assunto, que os pobres e miseráveis costumavam chegar em grande número ao redor dos fossos dos castelos para receber, da nobreza e senhores feudais, as esmolas, distribuídas em forma de restos de comida. Além disso, o que a nobreza e a igreja reservavam aos pobres era o calor das fogueiras, a pressão das cordas na forca com a promessa do paraíso no céu, claro, se seus pecados fossem perdoados pelos clérigos. Deve-se ressaltar que se podia comprar o perdão. Aliás, ainda na atualidade há correntes religiosas que comercializam a chave para o paraíso, para a felicidade e o sucesso: o dízimo. Mas isso é outra história.

Com o desenvolvimento da organização social e da história humana (humana: denominação que acho estranha à realidade dos fatos, mas ainda de uso comum em todos os níveis sociais), os pobres deixaram de escutar, aceitar e sofrer obedientes e começaram a se organizar e conquistar direitos. Com o crescimento da população aumentaram as necessidades materiais obrigando o aumento da produção e as mudanças nas formas de controle e apropriação das riquezas, que chegou ao patamar atual, com o elevado nível de conhecimento e produtividade graças à tecnologia, conhecimento e ciência. A produção atual nada tem haver com os tempos de escassez, muito pelo contrário, vive-se um tempo de desperdício e acumulação, cada vez maior do resultado do trabalho manual e intelectual de milhões de trabalhadores e trabalhadoras.

Nesse contexto de não silêncio ao descontentamento, no século XIX lutou-se por oito horas de trabalho, oito horas de laser e oito horas de descanso, avançando-se em inúmeras conquistas. Na atualidade os trabalhadores saem de casa com o dia ainda escuro e chegam em seus lares após o sol se pôr, mas são outros tempos. Pode-se ter celular, acessar a internet, andar de avião e sonhar com o carro da última marca, viagens e muitos outros produtos e serviços nos balcões: televisões, outdoors, internet e jornais.

Tenta-se passar a ideia que não mais se luta contra o capital, apenas que muitos ainda ousam se rebelar contra este senhor todo poderoso, criador do céu e da terra. Os corações e mentes estão totalmente controlados pela burguesia, insaciável por satisfazer seu desejo que se sustenta no prazer causado pelo consumo.

Solidariedade é uma palavra (re)corrente muito falada e escrita, pode-se ouvi-la e lê-la nos mais variados lugares com muita facilidade, o que não se pode dizer o mesmo do ato de praticá- la . Propaga-se a palavra apenas com o discurso, enquanto dentro das escolas, universidades, residências, locais de trabalho e nas ruas as relações interpessoais se sustentam no salve-se quem puder, com atos que buscam, a qualquer preço, tirar proveito para a conquista de status e poder. Percebe-se que a distância entre a palavra e o ato se torna cada vez mais longínqua, apesar de se ouvir em larga escala o termo solidariedade. A mão que estende o mundo fácil, ágil, “acessível” que se solidariza com o trabalhador oferecendo-lhe uma “liberdade” de escolha é a mesma que adormece bocas, mentes e veda olhos.

Mesmo assim, verifica-se que ainda há muitas pessoas, por todas as partes do planeta, que se organizam e se contrapõe ao modelo de “solidariedade” propagado pelo sistema. São jovens, homens e mulheres que praticam a solidariedade cotidianamente. Ajudam a organizar as pessoas que sofrem as imposições econômicas e culturais, realizam ações nos bairros periféricos e centros urbanos fortalecendo laços de respeito, cuidado e preocupação com o efeito de suas atitudes para as outras pessoas e a natureza. Homens e mulheres que praticam ações transformadoras se contrapondo ao egoísmo, a usura e as mentiras usadas em larga escala, no dia-a-dia pelo sistema que faz de multidões apenas estatísticas de consumo e lucro para a acumulação de riquezas dos poucos que controlam a economia.

No século XIX muitos trabalhadores se mobilizaram em todo o mundo para conquistar direitos, como a redução da carga horária de trabalho, educação, moradia e terra. No século seguinte duas guerras dizimaram milhões de pessoas, com o uso de armas modernas que eram descobertas. Quando se despejou toneladas de bombas atômicas sobre o Japão, mesmo com a guerra já em seu fim, os países mais ricos e poderosos deixaram claro que não abririam mão do controle político e ideológico do mundo. Iniciamos o século XXI descobrindo novas formas de propagação da resistência, da busca de relações mais fraternas e solidárias. A população planetária iniciou um novo século descobrindo a necessidade da mudança do comportamento em relação à natureza. Preservar, recuperar e cuidar do meio ambiente, com uma perspectiva nova, recém descoberta, passou a serem metas dos movimentos organizados da sociedade.

Fala-se na flexibilização das relações de trabalho e na redução do Estado, ao mesmo tempo, que a solidariedade se torna escassa nas ações mais comuns na sociedade. Se no passado que a luta para acabar com a exploração do homem pelo homem era mais contundente para a construção de um mundo mais justo, nesse novo tempo em que os debates ambientais e a busca do aumento da produtividade estão em destaque, o que se pode fazer para tornar a solidariedade uma prática comum na sociedade atual?

Nada mudará sem uma efetiva prática solidária e o cuidado necessário com a espécie humana, especialmente com os mais necessitados, disponibilizando a tecnologia e a produção econômica para atender de forma verdadeiramente solidária e justa as relações nas humanas.

A essência do sistema capitalista, em seus cinco séculos de existência, tem sido aprofundar ao máximo a exploração da classe produtora e da natureza, deixando cada vez mais restrito o grupo dos detentores das riquezas.

Dar assistência ao outro, significa romper esse tempo, fortalecendo a solidariedade com atos e práticas que propaguem um novo tempo, quando a vida, a natureza e o cuidado sejam os princípios do comportamento social, especialmente dos mais interessados, os trabalhadores.

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