48 anos depois de 1964


Por Jéssica Maiara R. Martins e Pedro César Batista*

            O Golpe contra a democracia 

Com o argumento de que era preciso impedir que os comunistas tomassem o poder, os militares brasileiros, orientados e organizados pela CIA – conforme extensa bibliografia (1) – com o uso da violência, do arbítrio e da mentira, derrubaram o governo constitucional do presidente João Goulart no dia da mentira, 1º de abril de 1964.

O Brasil vivia um período de crescente efervescência política. Os estudantes e os trabalhadores do campo e da cidade estavam mobilizados nas ruas, escolas e fábricas lutando pelos interesses nacionais e populares: reforma agrária, educação pública e gratuita, nacionalização das empresas estrangeiras e a proibição das remessas dos lucros das multinacionais para o exterior. Mesmo assim havia entre o governo de Goulart e a sociedade um diálogo aberto (2) .

Nesse mesmo período o mundo vivia o auge da Guerra Fria. Cuba ousava construir uma pátria socialista sob o nariz dos EUA, com um grupo de jovens barbudos revolucionários desafiando o poder americano. O bloco socialista, comandando pela URSS, apontava para o mundo a possibilidade de construir uma nova relação econômica entre os países – solidária e internacionalista – através do Conselho para Assistência Econômica Mútua (COMECON). Esse foi um período, com destaque para a segunda metade da década de 1960, marcado por grandes mobilizações da juventude por todo o mundo, entre elas a Primavera de Praga, as manifestações contra a guerra no Vietnam, pela paz mundial e pelo fim das ditaduras na América Latina, com destaque para o Brasil.

Ao mesmo tempo, abaixo da Linha do Equador, os generais não vacilaram. Para impedir a chegada dos comunistas ao poder valia tudo. Foram seis golpes militares no continente, apenas entre 1964 e 1966 (3). Os direitos civis, a liberdade, a democracia e a legalidade foram jogadas, sem nenhum pudor, na latrina. O saldo foram milhares de torturados, perseguidos, exilados e mortos. No Brasil as direções sindicais, estudantis e os partidos políticos foram cassados. As liberdades individuais deixaram de existir. O terror e a tortura tomaram conta do país.

Em 1968 veio o AI 5: o golpe radicalizado, com a violência se tornando a norma aplicada pelos generais governistas. Os bate-paus, torturadores, infiltrados e agentes a serviço da doutrina de “segurança nacional” não deixaram por menos. Os quartéis e prisões se transformaram em centros de torturas, ninguém escapava. O general Emílio Garrastazu Médici transformou o país em um campo de guerra, intensificando a resistência por parte dos que ainda lutavam. A repressão foi mais violenta. Em cinco anos as principais lideranças das organizações de esquerda foram dizimadas, e os corpos até hoje estão desaparecidos. Centenas. Os sobreviventes foram aqueles militantes que conseguiram ir para o exílio.

Apesar de toda essa escuridão imposta à sociedade, os meios de comunicação passavam a imagem de um país em progresso, com uma seleção vitoriosa na Copa do Mundo de 1970, no México, com todo um glamour transmitido pela recém criada Rede Globo de Televisão – que por sua vez servia aos interesses dos golpistas – e o famoso slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, como parte de uma campanha que visava colocar a população contra aqueles que combatiam o arbítrio institucionalizado.


              A resistência volta às ruas 

A partir de 1978, a população voltou às ruas. Ocorreu a greve de mais de 30 dias no ABC paulista, que colocou em cheque a ditadura. No ano seguinte, a União Nacional dos Estudantes (UNE) foi reconstruída, a Anistia, não ampla, geral e irrestrita, foi conquistada e os sindicatos retomaram suas lutas. As lideranças cassadas começaram a retornar ao país, e novas surgiram. As mulheres, os jovens, os Comitês em Defesa da Amazônia, e as comunidades das periferias dos grandes centros começaram a se reorganizar. No campo, os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR), antes liderados pelos interventores impostos pela ditadura, voltaram a ser dirigidos por lideranças autênticas, vindas dos movimentos de luta camponesa (4). As eleições diretas, inicialmente apenas para governador, ocorrem em 1982, o que se torna um movimento irreversível. Em 1984, milhões de brasileiros foram às ruas exigir eleições diretas para presidente, o que possibilitou a eleição de Tancredo Neves, pelo Colégio Eleitoral, para a Presidência da República, derrotando Paulo Maluf – o candidato dos militares.

O Congresso, eleito em 1986, teve o importante papel de elaborar uma nova Constituição para o Brasil, que ficou conhecida como “Constituição Cidadã”. Em 1989, a campanha da Frente Brasil Popular unificou vários setores organizados da sociedade em apoio à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, levando mais uma vez a população às ruas, mas agora sem a ameaça da violência e opressão declarada dos militares. Contudo, o eleito foi Fernando Collor de Melo, que sofreu impeachment dois anos depois, após denúncias de corrupção e a mobilização da população, com destaque para os Caras Pintadas.

Em 2002, o Brasil elege pela primeira vez um operário, oriundo da resistência sindical, que teve papel determinante para por um fim ao governo militar, Lula. Esse foi reeleito em 2006 e elegeu em 2010 sua sucessora, Dilma Rousseff, com uma ampla base aliada, formada tanto por partidos oriundos da resistência à ditadura, como por partidos que sustentaram o governo militar (exemplo: PP, antigo Arena e PDS/PPB).

             
                  E agora, onde estamos (vamos)? 

Passaram-se 48 anos e o que ficou do tempo de medo e escuridão vivido nos anos de ditadura? Os militares que controlaram o governo por mais de vinte anos impuseram uma anistia que colocou no mesmo patamar torturados e torturadores, diferente de todos os países do mundo que também tiveram ditaduras, mas julgaram os que atuaram a margem da lei e da democracia. Aqui os torturadores ficaram isentos de qualquer punição e julgamento pelos crimes praticados em nome do Estado. Decorridas décadas ainda há centenas de pessoas que não tiveram seus paradeiros localizados, sabe-se apenas que foram presos, torturados e depois desaparecidos. Seus corpos até hoje não foram localizados. E os seqüestradores, fardados ou civis, não aceitam sentar no banco dos réus e rugem a qualquer sinal de justiça por parte da sociedade e do Estado.

Já no que concerne ao campo, no período entre o golpe e o seu fim, as melhores terras foram apropriadas por poucos, financiadas por recursos públicos de bancos estatais, destinadas aos grandes projetos – como o Projeto Jarí, que concentrou milhões de hectares entre o Pará e o Amapá (5). A ditadura adotou a aplicação do modelo econômico liberal, tornando-se serviçal e dando amplos poderes às transnacionais, criando as condições para que a produção e a riqueza cada vez mais ficassem concentradas nas mãos de poucos. A população camponesa deslocou-se para os grandes centros urbanos, confiante que conquistaria uma vida melhor e mais digna, mas se deparou com uma realidade de desemprego e miséria social, sendo obrigada a viver em periferias, sem as mínimas condições de habitação, trabalho, saúde e educação. Enquanto isso, as terras produtivas foram fatiadas entre alguns poderosos brasileiros e estrangeiros, que tiveram seu poder econômico e político fortalecido ao longo desses anos, dando-lhes grande poder de influência sobre o Estado e seus respectivos poderes. Essa realidade de injustiça e impunidade levou ao assassinato seletivo das lideranças de trabalhadores rurais, que combatiam a ocupação e formação dos latifúndios, mobilizando a população camponesa para lutar pela reforma agrária. Enquanto essa triste realidade ainda se dá na zona rural brasileira, nas cidades as lideranças foram, em grande número, cooptadas pelo aparelho de Estado, processo intensificado após o governo Lula (6).

A juventude que acreditava na possibilidade da construção de uma sociedade diferente e defendia o socialismo, sem os pilares do lucro, da exploração do trabalho e do acúmulo do capital, em grande parte, deixou-se levar pelo canto e encanto das luzes das marcas mais famosas e da moda. Muitos sonhos dos que lutaram antes do golpe se confundiram na poeira dos escombros da queda do muro de Berlim e na débâcle da URSS. Os sonhos mais comuns da atualidade se tornaram acumular riquezas e consumir. O mercado é o Deus onipresente e todo poderoso. O que virá depois deste tempo somente a sociedade poderá apontar, caso se disponha a romper o marasmo que levou a pulverização das lutas, enquanto parte dos mesmos que provocaram o medo dos comunistas em 1964, conseguindo dar o golpe, continuarem no poder, agora aliados com os novos governantes, que passaram a reproduzir a prática do clientelismo e da despolitização da sociedade.

O que percebemos hoje é que o sentimento da rebeldia coletiva e revolucionária foi minimizado, em parte substituído por um sentimento individualista para a sobrevivência dentro desse “salve-se-quem-puder” do tempo presente. Porém, felizmente ainda há alguns focos de rebeldia e indignação, com setores da sociedade que, apesar da desesperança, ousam atuar e combater o sistema, o neoliberalismo e seus valores (ou a falta destes). Destacam-se, nesse sentido, os movimentos feministas, do campo e da cidade, a juventude através do movimento estudantil, ambientalista e de luta contra a corrupção, os movimentos de luta pela reforma agrária, os educadores populares, os grupos de economia solidária e os variados segmentos organizados da sociedade civil. Ainda há carência de um projeto coletivo entre os que continuam a luta pelos antigos ideais e os que iniciam novas lutas, no entanto, as ações dos mais variados grupos ainda apontam a possibilidade de alcançar um futuro mais justo, fraterno e solidário para o povo brasileiro.


Jéssica Maiara R. Martins – cientista política 
Pedro César Batista – jornalista e escritor. 


(1)Ver, por exemplo, As veias abertas da América Latina (4ª edição, 1996), de Eduardo Galeano; A ditadura envergonhada (2002), A ditadura escancarada(2002), e A ditadura derrotada(2003), todos de Elio Gaspari (2002); e Combate nas trevas, Jacob Gorender(1987).
(2)Ibdem.
(3)Eduardo Galeano (1996)
(4)BATISTA, Pedro C. João Batista, mártir da luta pela reforma agrária. 2ª edição 2008, Expressão Popular.
(5)Ver BATISTA, Pedro C. (2008) e www.lucioflaviopinto.com.br
(6)RICCI, Rudá. Lulismo,Da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira. Brasília, Fundação Astrojildo Pereira, 2010.

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