Observatório da Justiça. Oportunidade de sua criação na semana em que o meio-ambiente brasileiro sofre uma das suas maiores derrotas

Por Jacques Távora Alfonsin e Antonio Cechin

Dias 2 e 3 deste mês, realizou-se em Brasilia, a convite do Ministério da Justiça, por sua Secretaria de Reforma do Judiciário, com o apoio da Comissão de Anistia e da UNB, um Seminário objetivando estudar a viabilidade de criação do “Observatório da Justiça Brasileira”.

Quatro mesas temáticas, sobre “O sistema judicial brasileiro no contexto de uma sociedade democrática contemporânea”, “Comunicação social, justiça e cidadania”, “Movimentos sociais, justiça e democracia”, “Direito e justiça em debate: é possível uma justiça cidadã?” ouviram e debateram - com autoridades do Poder Judiciário de diferentes Estados, Tribunais Superiores, como o Superior Tribunal de Justiça, associações de juízas/es, de promotoras/es, de advogadas/os, integrantes de ONGs e Movimentos Populares, como o MNDH (Movimento nacional de direitos humanos), o MST, a Themis, o Cohre, entre outros, - as causas e efeitos das dificuldades que o povo pobre do país enfrenta no acesso à justiça; do aumento da litigiosidade submetida ao Judiciário; da extraordinária carga de processos pendentes de julgamento no país e, consequentemente, da grave acentuação da morosidade processual, em prejuízo flagrante da solução justa e legal das lides.

Para se ter uma idéia dos problemas atualmente enfrentados pelo Poder Judiciário Brasileiro, dois exemplos, entre os muitos que ali foram discutidos, parecem suficientes. Ao nível dos municípios brasileiros, 60% das nossas comarcas não dispõem sequer de Defensorias Públicas, deixando a população pobre praticamente sem defesa dos seus direitos. Se esse dado revela problema grave no acesso à Justiça, um outro demonstra o estreito gargalo atual de sua saída. Ele aparece no site “Jus Brasil notícias”, que foi lembrado durante o evento. Num período de dez anos (1998-2008) o Superior Tribunal de Justiça viu triplicado o número de processos ao mesmo submetidos. Em 98 esse número era de 101.467 processos; no final de 2008, 354.042. Não há como deixar de reconhecer, diante desses números, que uma tal sobrecarga não tem como ser vencida, no tempo que um Judiciário célere pretendesse solucioná-la, pelos trinta e três ministros que o compõem.

Note-se o paradoxo. Apesar do acesso difícil, o número de processos judiciais aumenta, ficando claro que não é a maioria do povo pobre, justamente a mais carente de assistência judiciária, que abarrota os tribunais. Esses e outros dados foram analisados pelos participantes do Seminário, com a humildade de reconhecer que o acesso à verdadeira justiça está longe de ser alcançado com o só acesso ao Judiciário, e esse, enquanto Poder Público, tem também responsabilidade em dividir a responsabilidade pela solução de problemas que dizem respeito tão direta e urgentemente com os direitos do povo a quem ele deve servir.

Presente no Seminário, o Professor Boaventura de Sousa Santos lembrou lição que ele vem pregando há anos, não só em relação ao Poder Judiciário, como em relação a outros poderes, sobre o que ele chama de “ecologia dos saberes”. Na semana consagrada ao meio-ambiente, é muito oportuna a analogia que daí pode ser tirada entre a saúde da nossa natureza, com a saúde da justiça, que o Seminário viu tão debilitada.

Resumidamente, ensina Boaventura que esta ecologia de saberes permite não só superar a monocultura do saber científico, como a idéia de que os saberes não científicos são alternativos ao saber científico. A idéia de alternativa pressupõe a idéia de normalidade, e esta a de norma, pelo que, sem mais especificações, a designação de algo como alternativo tem uma conotação latente de subalternidade.
Veja-se em que extensão esse ensino acaba de ser confirmado na votação com que o senado acaba de aprovar a Medida Provisória 458 que, na linguagem da senadora Marina Silva, consagra a grilagem na Amazonia legal. Nada do que, para a maioria dos deputados e senadores, é “alternativo” (no caso, a defesa do meio-ambiente) ao ímpeto predatório da exploração da terra e da natureza, deve ser levado em conta.

O direito de propriedade que vai ser alcançado, com a tal medida, foi lembrado pela relatora Katia Abreu, como cláusula pétrea da Constituição Federal e, em nome dela, que toda a discussão, a respeito, se encerre. Esqueceu-se ela de que a função social, dentro da qual se insere o respeito devido ao meio ambiente, é princípio inerente daquele mesmo direito.

As lágrimas de Marina Silva, durante a votação da Medida, hão de ser as mesmas do povo pobre da Amazonia legal, se ela não for vetada pelo presidente da República. A interpretação e a aplicação da tal Medida, pretensamente “científica” de conhecimento da aplicação da lei vai consagrar uma forma de desconhecimento da injustiça que ela vai gerar.

O seminário, de modo particular na palavra dos movimentos sociais, mostrou que ignorar esse outro mundo (!) cultural de índias/os, quilombolas, desempregados, biscateiros, sem-teto e sem-terra, catadores de material, entre outras pessoas que compõem o extraordinário mosaico de gente pobre do nosso país, não tem mais como ser atitude reconhecida como legal e justa. Por isso, para que o Poder Judiciário possa cumprir melhor a sua missão, inclusive para reduzir a distância que lá se comprovou ainda existir entre ele e aquelas pessoas, recomendou Boaventura três necessárias providências a seu cargo que, com a licença desse professor, entendemos notavelmente favoráveis à saúde do “meio-ambiente” no qual se move o Poder Judiciário: descolonizar a atividade judicial, ainda muito presa a um modelo jurídico alienígeno de interpretação e de aplicação da lei, estranho à maioria do povo, e que acaba por desmentir a soberania desse mesmo povo (art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal); democratizar os seus processos e procedimentos, no sentido não só de ampliar e de tornar mais simples e eficaz o acesso do maior número de injustiçados à justiça, como permitir mais agilidade de ação, melhor compreensão da sua linguagem; desmercantilizar as causas e os efeitos das suas decisões, não se deixando tomar por aqueles que o utilizam em proveito apenas aparentemente lícito de seus privilégios, garantes reprodutivos de uma opressão capaz de se disfarçar como legal. Não há uma dessas providências aconselhadas por Boaventura que não sirva de grave advertência ao que acaba de acontecer no Senado brasileiro.

No encerramento do Seminário, o Ministro da Justiça Tarso Genro assinou uma portaria criando um grupo de trabalho que, conforme ele já tenha antecipado na abertura do Seminário, possa, entre outros objetivos, constituir um espaço público de pesquisa e elaboração de diagnósticos prévios às reformas normativas do sistema de Justiça”, “desenvolver estudos que subsidiem políticas para a agilização da prestação jurisdicional” e “formular e avaliar políticas públicas que garantam os direitos fundamentais e a participação social”. É de 120 dias o prazo para esse trabalho ser concluído.

Por tudo isso, não deixa de constituir uma coincidência a ser levada na devida e séria conta, o fato de esse Seminário ter-se realizado na semana consagrada ao meio ambiente. Não há exagero em se dizer que, como a defesa do meio-ambiente, a ecologia dos saberes pode muito bem se aplicar ao Poder Judiciário.

Toda a interdisciplinariedade própria dessa ecologia não há de ter melhor efeito que não o de, se não eliminar (coisa impossível diante das conhecidas limitações de cada pessoa e instituição) pelo menos diminuir as causas daquelas decisões, sentenças e acórdãos que o Seminário ainda detectou como injustas.

Como a defesa do meio ambiente, a dos saberes também pretende um ar mais puro, uma água mais transparente, que obtenham oxigenar e lavar a interpretação da lei de vícios históricos que marcam a sua aplicação, permitindo que o Poder Judiciário, aquecido e iluminado pelo sol da justiça, como o sol e a lua de São Francisco, em vez de confundir tão frequentemente seu poder sancionatório com a opressão histórica que a senadora Katia Abreu defende, tome posição efetiva a favor de quem dela é vítima.

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