GREGÓRIO BEZERRA: O CENTENÁRIO DE UM VALENTE














Sérgio Augusto Silveira

Há 17 (hoje 26 anos) morria em São Paulo aquele que, já em vida, passou a
ser
considerado como um dos maiores heróis populares da política brasileira,
Gregório Bezerra. No dia 13 deste mês, Gregório, que morreu aos 83 anos
depois de uma vida de militância comunista contra o capitalismo e as
ditaduras no País desde os anos 30, completaria 100 anos de nascimento. Este
centenário vem sendo comemorado desde o ano passado, quando mereceu uma
placa
na calçada do monumento Tortura Nunca Mais, no Recife, por iniciativa da
Associação Pernambucana de Anistiados Políticos, partidos de esquerda e ex-
colegas do PCB, como o ex-vereador Roberto Arrais.

O mito em torno de sua figura, capaz de mobilizar entidades, inspirar
escritores e até disputa pela ‘paternidade’ das comemorações do seu
centenário, deve-se ao seu exemplo de firmeza no cumprimento das missões que
recebia do PCB, ao enfrentar 20 anos de prisão, as torturas da polícia e do
Exército e a discriminação no partido. Gregório organizou e pôs em
funcionamento pelo menos uma centena de sindicatos rurais de orientação
marxista em quase todos os Estados. Seu exemplo é reconhecido até pelos
antigos inimigos ideológicos. Quem o conheceu de perto no corpo a corpo da
militância, vê mais uma razão para o carisma: seu discurso coloquial de
velho
camponês e de imediata comunicação com o povo. Esta foi sua grande arma,
temida pelos governos que se sucederam até o regime dos generais, derrubado
em 1985.

Integrante do Comitê Central do PCB, ao lado do lendário chefe comunista no
País, Luiz Carlos Prestes, Gregório sempre disse que “um revolucionário deve
ser, antes de tudo, um audacioso”, e deu exemplo disto quando, no Recife,
deflagrou o movimento de insurreição planejado pela Aliança Nacional
Libertadora para assumir o poder, tomando de assalto o CPOR, do qual era
sargento-instrutor. o movimento fracassou, ele ficou preso 10 anos até o
final da ditadura Vargas, em 1945, mas o sargento criou fama, principalmente
em suas ações para organizar e trazer para o partido os trabalhadores do
campo. Com este discurso, Gregório sai, em 1946, candidato a deputado
federal
constituinte pelo PCB legalizado. É eleito com a maior votação na Região
Metropolitana. Os trabalhadores, assim como parte da classe política, têm,
até hoje, um juízo dúbio acerca deste líder, ora evitando falar em seu nome
devido ao estigma de comunista, ora vendo nele uma espécie de Robin Hood.

Gregório sensibilizou de fato o Recife e o País para o seu nome no momento
em
que foi vítima de tortura em público, logo após o golpe de 1964, quando, aos
64 anos, foi preso e arrastado por um destacamento militar, acorrentado e
espancado nas ruas do bairro de Casa Forte. A cena chocou a cidade. Mas o
calvário de Gregório aconteceria também em suas fileiras, já que o Comitê
Central do PCB o hospedou, mas nunca reconheceu sua capacidade de decidir e
projetar ações políticas, vendo nele um velho camponês experiente,
disciplinado, mas simplório, pronto apenas para cumprir tarefas. Nascido no
município de Panelas, no Agreste pernambucano, paupérrimo, menino de rua que
teve mais tarde só a instrução recebida no Exército e a doutrinação
partidária, Gregório não era um in tel ectual como Prestes. Esta simplicidade
o
fez ser o preterido até no uso do microfone nos comícios, esquecido por quem
se dizia seu aliado, a ponto de ser forçado a assumir uma candidatura errada
nas eleições de 1982. Filiado ao PMDB, após acusar o PCB de desvio
direitista
e sair da legenda, concorreu a deputado federal, obtendo apenas 12.156 votos
sendo uma vítima do grande confronto que começava entre Jarbas Vasconcelos e
Miguel Arraes. Ambos se desafiavam para ver quem seria mais votado, o nisso
concentraram mais de 350 mil votos.

Alto, rosto avermelhado, olhos verdes e fala compassada, Gregório tinha uma
forte compleição física, que o ajudou a resistir aos maus tratos. Casado com
uma mulher também de origem camponesa, dona Maria, Gregório teve um casal de
filhos que não herdaram seu ímpeto político, e ainda tem parentes em sua
cidade natal, a exemplo de seu sobrinho João Alves dos Santos, de 80 anos,
agricultor. E de sua sobrinha Aurelino Azevedo, que faz questão de orientar
seus alunos, no colégio estadual Gregório Bezerra, em Panelas, sobre quem
foi
o “Homem de ferro e flor”, na expressão do poeta maranhense Ferreira Gullar.
De ferro mas frustrado em certos momentos, como confessou ao jornalista
Geneton Morais Neto, em 1983. “Em 1964, a frustração foi tamanha, pois a
massa camponesa estava pronta para agir e repelir o golpe militar
terrorista.
Mas não tínhamos armas. Ainda tentei buscar armas no Palácio das Princesas.
Desgraçadamente, quando cheguei Arraes já estava preso. Voltei de mãos
vazias
ao campo, para desfazer todo um trabalho de conscientização da massa
camponesa para o confronto. Meu problema não foi o sofrimento, mas a
frustração”. E mais adiante: “Não me arrependo. Tenho plena consciência de
que meus atos revolucionários foram justos e oportunos. O que posso ter
feito, e aí faço autocrítica, é que sempre fui tarefeiro, não tinha boa
formação teórica”.


Advogada lembra trajetória de lutas do líder comunista

A estudante concluinte de Direito e professor a, Mércia Albuquerque, passava
pela praça de Casa Forte, no dia dois de abril, logo após o golpe militar de
1964, justo no momento em que um homem idoso estava sendo arrastado na rua e
espancado por um coronel e vários sargentos, sob o olhar horrorizado dos que
passavam. “Naquele momento eu decidi que iria defender aquele homem que
estava sendo torturado em público. E foi o que fiz”, conta Mércia, que se
tornou advogada de presos políticos e, em especial, de Gregório Bezerra, com
quem aprendeu a dimensão dos problemas políticos e sociais brasileiros. Hoje
titular da Ouvidoria da Secretaria de Justiça do Estado, ela sofreu maus
tratos e foi jogada no xadrez, mesmo gestante, várias vezes, por defender os
inimigos do novo regime.

“Quando eu vi aquela cena, lá em Casa Forte, com o coronel Darcy Villoc
Viana
(o oficial que comandou a prisão de Gregório) gritando ensandecido e
ameaçando o ancião, enquanto soldados muito jovens arrastavam aquele homem
cambaleando, eu senti que deveria deixar minha profissão de professor a de
menores abandonados e passar a fazer algo por aquele homem torturado”,
lembra
a advogada.

Ela localizou Gregório no Parque de Motomecanização, um quar tel em Casa
Forte. “Ele estava numa cela, com os pés queimados por soda cáustica e a
cabeça quebrada. O coronel Villoc disse que eu era uma atrevida. E
falou: “Com este ferro eu espanquei seu cliente. O que a senhora acha?”. Eu
respondi: “O senhor tem a força, mas...”. aí ele falou: “Mas o quê?”. E eu
disse: “Mas mesmo! Posso ir?”. E ele falou: “Dane-se!”. Para ela, naquele
momento o País vivia “uma síndrome de sangue”.

Passados 36 anos daquelas cenas, Mércia ainda lembra com emoção, assistindo
à
movimentação das comemorações dos 100 anos de seu amigo e ex-cliente. “Todos
temiam aproximar-se de mim porque eu defendia os presos políticos”, revela,
fazendo questão de mencionar o então escrivão da Vara de Homicídios, Décio
Magalhães que, em 1967, aceitou, com riscos, levar para casa as razões de
defesa de Gregório, rascunhadas por ela, para datilografar. Ainda sem
experiência profissional, Mércia pedia ajuda dos advogados Rui Antunes e
Cláudio César Andrade. Eles iam para uma granja, de madrugada para não serem
vistos pela férrea vigilância policial, onde preparavam as petições. Naquele
momento, Gregório estava doente da próstata e tinha sido removido para o
hospital onde hoje é o Ipsep. Conta que havia policiais com metralhadora
apontando para ela até dentro do quarto do paciente. “Eles queriam ficar até
dentro da sala de cirurgia, mas o coronel-médico César Montezuma os
expulsou.
Eu rendo homenagens ao falecido coronel”.

Sabe-se que, antes mesmo de ser preso, Gregório esteve escondido durante um
dia numa usina, enquanto aconteciam centenas de prisões no Recife e no
campo.
Passadas três décadas daquela noite, a advogada, que sabe detalhes contados
por seu cliente, evita revelar quem foi o usineiro que escondeu o líder
comunista. Indagada a respeito, ela limita-se a dizer: “Este usineiro foi um
político muito importante no Estado, é vivo e às vezes se fala nele”.

Segundo Mércia Albuquerque, a vida de Gregório esteve por um foi também
antes
de ser entregue ao Exército. Conta que o capitão PM Álvaro Rêgo Barros
prendeu Gregório na Usina Pedrosa, em Ribeirão, mas, no caminho, o usineiro
José Lopes Siqueira, acompanhado de pistoleiros, exigiu que o oficial lhe
entregasse o pistoleiro. Era para trucidá-lo no canavial. O capitão não
aceitou. Quase houve tiroteio, mas Rêgo Barros venceu a parada e, como diz
Mércia, “ele não sujou as mãos com o sangue da história”.

A advogada diz que nunca comungou da mesma ideologia de seu cliente, mas
reconhece que “tratava-se de um líder autêntico, que assumiu corajosamente
suas posições, ainda que isso tenha sido causa de muitas privações e
sofrimentos”. Revela que ele sempre foi o remediador nos confrontos entre os
presos. Respeitava a todos, independente de facção. E mais, revela
Mércia: “As mulheres se apaixonavam por ele. Médicas, advogadas lhe mandavam
cartas. Eu recebia e as rasgava. Achava que a mulher dele, Maria da Silva
Bezerra (dona Maroca) não podia ser maculada. Um dia Gregório descobriu que
eu rasgava as cartas. Continuei rasgando. A esposa dele, uma camponesa
maternal, sempre deu todo apoio a ele, criou os filhos Jandira e Jurandir
com
dignidade. Eu contei a ela sobre as cartas. Hoje eu me arrependo de as ter
rasgado”.

Mércia conta que, em 1969 na Casa de Detenção, disse a Gregório que ele se
preparasse para sair, pois era um dos presos que iam ser trocados pelo
embaixador dos Estados Unidos, Burke Elbrick, sequestrado pela guerrilha
urbana. Gregório, que já estava com 69 anos, não aceitou ser solto, dizendo
que a decisão era do partido. A advogada disse que ele não poderia
prejudicar
outros presos que estavam na lista. Ele, então, seguiu para o exílio.






CRONOLOGIA


1900 – Nasce Gregório Lourenço Bezerra, no dia 13 de março, no sítio Mocós,
município de Panelas, no Agreste pernambucano. Aos quatro anos começa a
trabalhar na roça, aos oito fica órfão de pai e mãe e aos 10 vira empregado
de senhor de engenho.

1911 – Revolta-se contra os maus tratos e foge para o Recife, onde vira
menino de rua. No ano seguinte, começa a trabalhar como gazeteiro.

1916 – Como ajudante de pedreiro começa a participar do sindicato. No ano
seguinte, acusado de agitação, é preso na Casa de Detenção do Recife, onde
passa quatro anos e oito meses.

1922 – É libertado, enquanto no Rio de Janeiro era fundado o PCB.

1923 – Gregório entra no Exército, no antigo 21º Batalhão de Caçadores. É
transferido para a 1ª Cia. de Carros de Assalto, no Rio. Conhece Luiz Carlos
Prestes.

1925 – Alfabetiza-se matriculando em curso noturno.

1930 - Filia-se ao PCB.

1935 – Instrutor de educação física do CPOR, no Recife, o sargento Gregório
participa da Aliança Libertadora Nacional (ALN), toma de assalto o quar tel
do
CPOR. O plano fracassa e Gregório é preso.

1945 – Depois de passar pelas prisões de Fernando de Noronha e Ilha Grande,
Gregório é libertado no processo de redemocratização e decretação da
Anistia.
É eleito deputado federal constituinte pelo PCB, o mais votado no Recife e o
segundo no Estado.

1946 – Gregório é preparado para ser candidato a prefeito do Recife.
Prevendo
a vitória comunista, a Câmara dos Deputados aprova intervenção no Recife,
Santos, São Paulo e Rio.

1947 – O PC é posto na ilegalidade, Gregório é preso, com outros membros do
partido. É solto no Recife, depois de quase dois anos.

1964 – Novamente preso, no dia dois de abril, logo após o golpe militar.

1967 – Gregório é condenado a 19 anos de prisão. É levado para a Casa de
Detenção.

1969 – É libertado junto com outros presos políticos em troca do embaixador
norte-americano Burke Elbrick. Exila-se inicialmente no México, onde já
estava o fundador das Ligas Camponesas, Francisco Julião. Inicia seu exílio
em Moscou.

1979 – É decretada a Anistia e Gregório retorna ao Brasil.

1980 – Juntamente com Prestes, Gregório sai do PCB acusando o partido
de “desvios direitistas”.

1982 – Candidata-se a deputado federal em Pernambuco e é derrotado, obtendo
apenas 12.156 votos.

1983 – Cardíaco, tem uma crise e é levado a São Paulo , onde falece.


DEPOIMENTOS

Arquiteto Oscar Niemeyer (PCB), autor do projeto do Memorial a
Gregório: “Gregório

Ferreira Gullar, poeta, autor do poema “História de um valente” exaltando
Gregório: “Das figuras revolucionárias que conheci e que queriam mudar o
Brasil, Gregório era o que representava o povo humilde. Ele acendeu a
consciência de que é necessário mudar o Brasil. Nenhum outro revolucionário
brasileiro representou tão bem as camadas mais distantes dos problemas
políticos e ideológicos, ele que nasceu na roça e aprendeu a cortar cana.
Ele, na sua biografia, canta a alegria quando começa a chover. Ele é um
exemplo para todo jovem. Este tem que saber que houve, no Brasil, este homem
e há na nossa história. Assim, ele é permanente, porque representa o passo
adiante da consciência humana que é a liberdade. Não vejo ninguém
comparável,
hoje, a Gregório”.

Os versos célebres dedicados por Ferreira Gullar ao líder comunista,
constantes do poema “A história de um valente”:

“Mas existe neste terra

muito homem de valor

que é bravo sem matar gente

mas não teme matador,

que gosta de ser gente

e que luta a seu favor, como Gregório.


Ex-governador e presidente nacional do PSB, Miguel Arraes: “Conheci Gregório
Bezerra em 1934, quando eu tinha 17 anos e fazia serviço militar no tiro de
Guerra do Recife. Ele era sargento e foi meu instrutor. Depois nos
encontramos em muitos momentos das lutas políticas que travamos ao longo
desses anos todos. Embora pudéssemos ter divergências pontuais quanto às
táticas, sabíamos ter em comum a convicção de que era preciso afirmar a
dignidade de nosso povo e lutar contra a injustiça e a opressão. Guardo dele
principalmente a lembrança de sua simplicidade e da força com que defendia
suas convicções. Vítima da tirania que prende e tortura, nunca vacilou na
afirmação do que acreditava. Sua característica mais marcante era a coragem
e
a convicção”.

Luiz Carlos Prestes Filho, coordenador do projeto artístico comemorativo do
Centenário: “O exílio teve um lado feliz para mim. Convivi com Gregório nove
anos. Ele era pessoa frequente na nossa casa, a partir de junho de 1970.
Presenciei uma coisa magnífica: um homem que já tinha 70 anos participando
das aulas de russo com as crianças. Aprendeu a língua. Importante foi a
atuação dele em defesa dos direitos humanos, viajando pela Europa e dando
depoimentos à Anistia Internacional. Tinha mais vigor que muitos jovens. Ele
não dava chance da gente ficar triste e desanimado. Viajava com um
passaporte
cuba no. Jornalistas russos perguntaram a ele sobre qual a coisa da vida
brasileira da qual mais sentia saudade, e ele respondeu, “sinto mesmo é
saudade de comer jaca”.


Transcrito do JORNAL DO COMÉRCIO – Recife, 12.03.2000

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