Imunidade de rebanho é o genocídio dos povos indígenas no Brasil
Quinta, 23 de julho de 2020
Por Victor Hugo Viegas Silva*
badernaemiseria@gmail.com
Com o desespero aumentando, muita gente vem enxergando uma miragem de imunidade de rebanho no horizonte. “É possível que São Paulo esteja próximo da faixa onde ocorre imunidade de rebanho”, diz Fernando Reinhach. A queda dos números em junho e o platô permanente associado com o apagão de dados, muita gente está falando que a doença já passou e as mortes estão diminuindo muito – no Rio de Janeiro houve apenas 195 mortes, oras! Vejam o Amazonas onde um estudo apontou que 20% da população da capital foi infectada, desacelerou-se o covid-19 e já é possível enxergar um padrão de imunidade de rebanho, como se fala nesta notícia. O preço? Módicos 80 mil mortos e crescendo. E os indígenas? 501 mortos até agora. Talvez etnias inteiras destruídas. Vamos falar um pouco mais disso mais adiante.
O líder de estudo na Universidade Federal de Pelotas Pedro Halial estima que 3,8% dos brasileiros adquiriram a covid-19 até agora. 80 mil mortos. Por isso, ele diz, “esperar imunidade de rebanho é absurdo e antiético”. Os cientistas do Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) fizeram testes para detectar anticorpos contra o coronavírus em 89.397 pessoas de 133 cidades de vários Estados e entrevistas para entender como o vírus afeta diferentes classes sociais e grupos étnicos. É uma pesquisa bem feita. A resposta do governo federal? Cortar o financiamento dessa pesquisa porque está falando coisa que não interessa.
O que é a imunidade de rebanho, afinal? Uma ideologia. E não qualquer ideologia, trata-se de uma ideologia que se converteu em tecnologia de extermínio dos velhos, dos fracos, dos “indesejáveis”. Dominic Cummings, primeiro ideólogo do processo, resumiu bem a ideia: “proteger a economia, e se alguns aposentados morrerem, que pena”! Dito de outra forma por Boris Johnson: “Uma das teorias é que talvez você possa pegar esse vírus de frente, levar tudo de uma só vez e permitir que a doença, por assim dizer, se mova pela população, sem tomar tantas medidas draconianas” (em vídeo aqui). Dito ainda de outra forma por Bolsonaro: “É como uma chuva, vai atingir você”.
Duvidam? Pois vejam a Suécia que continua aplicando a imunidade de rebanho até hoje. Uma carta de 25 médicos epidemiologistas da Suécia fala que o objetivo do governo da Suécia (e do Brasil, da Inglaterra, dos EUA) nunca foi parar a doença, mas apenas desacelerar a doença para que o sistema de saúde não fosse sobrecarregado. Essa é a primeira premissa da imunidade de rebanho enquanto estratégia racional. Até agora a Suécia conseguiu que 10% de sua população fosse “imunizada”. A Suécia hoje tem mais mortes por milhão que os EUA: são 556 mortes por milhão, enquanto os Estados Unidos tem 425 mortes por milhão. 450% mais mortes que os outros países nórdicos juntos. 750% mais mortes por milhão que todos os outros países nórdicos juntos. Este é o efeito da imunidade de rebanho enquanto estratégia.
E como se sabe que é uma estratégia para além dos efeitos? As recomendações e omissões muito pontuais de agências e políticas governamentais. O governo da Suécia se recusou a aplicar testagem em massa. Obrigou as crianças a irem para escola, mesmo se apresentassem sintomas de covid-19. Recusou-se a reconhecer a importância da transmissão assintomática. Recusa-se a recomendar a utilização de máscaras em público e a utilização consequente de máscaras. O governo da Suécia encoraja pessoas com familiares / companheiros de casa infectados a irem pra escola ou a seus locais de trabalho. Então, pela recusa do governo em recomendar as políticas e em suas recomendações e obrigações esdrúxulas, é possível perceber o desenho de um plano que a população se contamine, mesmo que isso não seja explicitamente dito – uma vez que raramente será explicitamente dito.
O que não se diz muito nessa discussão toda de imunidade de rebanho no Brasil é que além dos vulneráveis e dos pobres, haverá uma vitima certa que arrisca desaparecer como “dano colateral” do “novo normal”: os povos indígenas. E esse processo já está acontecendo. O governo já está tentando fazer isso e pretendo demonstrar como e o que é isso que vem sendo feito nas próximas duas seções.
Povos que se recusam a desaparecer
“Meus antepassados morreram pelo mesmo que eu tô enfrentando: o garimpo ilegal e a epidemia”, nos diz Dario Kopenawa, liderança indígena Yanomami em luta para o El País. “Eu tô lutando pelo direito de viver em paz, sem perturbação. Pelo direito de morar, tomar água limpa, pela vida do povo Yanomami”, explica ele. Essa luta não começou na pandemia. Em 2019, Roraima exportou 195 kg de ouro à Índia sem ter nenhuma mina operando legalmente. Mas durante a pandemia ela se agravou. Na década de 1970, 40 mil garimpeiros invadiram as terras yanomami e mataram 22% dos yanomami pela epidemia, pelo garimpo ilegal, pelo assassinato.
Não foi a única tragédia recente. De acordo com Alexander L. Hinton, em Annihilating Difference: The Anthropology of Genocide, mais de 80 tribos indígenas desapareceram entre 1900 e 1957. De uma população de mais de um milhão, durante este período, 80% tinha sido assassinada por meio de doenças ou homicídio.
Revelação recente da Istoé também confirma que o alvo nunca saiu da testa dos povos indígenas no Brasil. Uma pesquisa encomendada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) estima que ao menos 8.350 índios foram mortos entre 1946 e 1988. Além da violência direta do Estado, os povos indígenas sofreram com a omissão do governo. Um exemplo de ação da época da ditadura que se reflete agora:
[Clique na imagem abaixo para melhor visualizá-la]
Apesar de não ser novidade, no entanto, estamos tratando de uma nova tentativa com uma escala e sistematicidade na intenção de exterminar que não se via há algum tempo por parte de governo, Estado e empresas brasileiras. É por isso que agora se fala de extermínio e genocídio. Por que essas duas palavras? Do que elas tratam? E está acontecendo algo mesmo intencional em relação a essas populações no Brasil, hoje?
Raphael Lemkin, o autor da noção moderna de genocídio, diz que “o genocídio não significa necessariamente a destruição imediata de uma nação, ele significa muito mais um plano coordenado de diferentes ações que visam à destruição dos fundamentos essenciais à vida de grupos, com objetivo de, mais adiante, exterminá-los”.
E o que é exterminá-los? De acordo o artigo sétimo, letra B, do estatuto de Roma, “o ‘extermínio’ compreende a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população”.
Sigo aqui a excelente argumentação da jurista Daisy Ventura, que vem fazendo um trabalho sistemático de acompanhamento das medidas do governo Bolsonaro e vem defendendo que ele seja investigado pelo crime de genocídio e extermínio da população. Ela defende essa argumentação com admirável consistência nessa entrevista.
Ela também comenta os vetos na política de assistência aos povos indígenas e acho que aqui cabe reproduzir o que ela diz porque mostra com bastante clareza a intenção do governo de “fazer a doença passar” pelos povos com as consequências que sabemos quais são.
Foi vetada a obrigação de organizar o atendimento de média e alta complexidade nos centros urbanos, foi vetado o acompanhamento diferenciado dos casos que envolvam os indígenas, inclusive foi vetada a oferta emergencial de leitos hospitalares e de UTI. Foi vetada a obrigação de aquisição ou disponibilização de ventiladores de máquinas de oxigenação sanguínea, foi vetada a inclusão dos povos indígenas nos planos emergenciais de atendimento dos pacientes graves das secretarias municipais e estaduais, que inclusive obrigava o SUS a fazer o registro e a notificação da declaração de raça e de cor. Com este veto, se tenta dificultar a identificação dos indígenas atendidos no SUS. Foi vetada a parte da obrigação de elaboração de materiais informativos sobre os sintomas da covid-19 em formatos diversos e por meios de rádios comunitárias e de redes sociais com tradução e linguagem acessível. Isso foi vetado. Foi vetada a obrigação de explicar para os indígenas a gravidade da doença! Foi vetada a obrigação de oferecer pontos de internet nas aldeias para não ser preciso se deslocar aos centros urbanos. Foi vetada a distribuição de cestas básicas, de sementes e ferramentas agrícolas a famílias indígenas.
Esse conjunto de vetos mostra que existe um plano, que existe intenção e que existe método no que está sendo feito por esse governo. Não se trata apenas de retórica inflamada. É retórica e prática sistemática. Organizei uma linha do tempo para ajudar a visualizar o processo que o governo vem realizando.
Linha do tempo dos ataques aos indígenas
Ao longo desses quatro meses de pandemia, foram 13.801 casos e 501 mortes de indígenas pelos dados da APIB (Associação dos Povos Indígenas do Brasil). Isso em um cenário de enorme subnotificação. Na realidade, o número deve ser maior. A linha do tempo foi feita utilizando informações do Instituto Social Ambiental.
25 de fevereiro temos a primeira notificação do vírus do Brasil. Qual a primeira ação “emergencial” do governo Brasileiro em relação ao povos indígenas? Ficamos sabendo dela dia 6 de março por uma manifestação em que índios vão “lembrar “ na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul aos poderes instituídosque o corte das cestas básicas pode gerar desnutrição. Os indígenas entram na pandemia sob uma ação de corte de assistência alimentar.
16 de março, o primeiro informe técnico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) recomenda isolamento domiciliar para indígenas que não necessitem de hospitalização. A recomendação ignora as casas compartilhadas.
17 de março, a Funai suspende a autorização de entrada em terras indígenas sem garantir nenhuma proteção de madeireiros e garimpeiros que já estavam dentro de seus territórios. A portaria também atribui poder às Coordenações Regionais para autorizar o contato com povos indígenas isolados “caso a caso” – contrariando a legislação vigente. A portaria pode ser conferida aqui.
19 de março, o Plano de Contingências para o covid-19 elaborado pela SESAI reproduz as medidas da Anvisa. Sem mais. Sem falar nenhuma necessidade ou realidade específica dos indígenas pra essa pandemia. Não consulta os povos.
23 de março, sai manifestação na Nexo de indígenas lutando contra a restrição e da falta de acesso a serviços essenciais para o cuidado à saúde. A APIB anuncia que vai adiar o Acampamento Terra Livre e os povos indígenas tomaram suas próprias medidas de prevenção.
30 de março o Informe técnico 4/2020 da SESAI orienta profissionais de saúde a tratar as síndromes respiratórias sem fazer testes para comprovar o coronavírus. Não existem protocolos para os profissionais de saúde que vão atender os indígenas.
1 de abril descobre-se que o primeiro indígena com covid-19 foi infectado por médico da SESAI que voltava de férias e já apresentava sintomas. Era um agente de saúde indígena. A quarentena prévia para os profissionais não estava prevista em nenhum protocolo. A notícia desse primeiro caso pode ser vista aqui.
2 de abril Bolsonaro sanciona a lei do auxílio emergencial sem políticas para evitar o contágio entre indígenas. De acordo com o Instituto Sócio Ambiental “o resultado, mais uma vez, foi trágico. Indígenas se deslocaram até as cidades para buscar o auxílio de R$ 600 e comprar alimentos, enfrentando aglomerações. Voltaram para suas aldeias com o vírus, contaminaram os mais velhos e, por isso, muitos morreram”.
3 de abril o secretário de saúde indígena Robson Silva afirma que apenas os indígenas aldeados serão atendidos pela SESAI. Isso exclui 324,8 mil que vivem em cidades. Para organizações indígenas, todos deveriam ser atendidos.
Dia 9 de abril morre o primeiro jovem yanomami. Foi a terceira vítima indígena de coronavírus no Brasil. No Distrito Sanitário Especial Indígena 108 profissionais testaram positivo para covid-19.
Dia 22 de abril, dois dias após o assassinato de liderança Uru-eu-wau-wau em Rondônia, a Instrução Normativa 9/2020 altera regras, permitindo que não indígenas permaneçam dentro de terras indígenas com limites já conhecidos, inclusive negociando imóveis. A pandemia está em plena aceleração.
24 de abril se descobre que as Casas de Apoio à Saúde Indígena (Casais) são fonte de contaminação entre indígenas. Pacientes alojados nas Casai de Manaus, no Amazonas, e na Casai Leste, em Boa Vista, se infectaram com o Covid-19. Na Casai de Boa Vista ainda tem 9 profissionais de saúde confirmados com covid-19.
17 de maio ao menos quatro pessoas em aldeias das etnias Tikuna e Karitiana morrem por Covid-19 após serem infectadas por jovens que deixaram a cidade pra receber o auxílio emergencial. O governo não fez nenhuma estratégia pra permitir que os indígenas ficassem em suas aldeias quando lançou o benefício. A Al Jazeera noticia 446 casos de Covid-19 e 92 mortes entre grupos indígenas, como pode ser visto aqui.
31 de maio o sistema Deter (INPE) registra 2,7 mil hectares de desmatamento nas terras indígenas na Amazônia Legal – desmatamento provocado por invasores. Um quarto dessa destruição foi provocada por garimpeiros ilegais atuando nesse território.
6 de junho são confirmados 3 indígenas com covid-19 no Vale do Javari, com presenças dos isolados, e mais de 15 indígenas com sintomas da doença. A suspeita é que a doença chegou com funcionário do sistema de saúde.
14 de junho a COVID-19 mata a primeira pessoa no território Xingu. Um bebê da etnia Kalapalo.
22 de junho descobre-se que a Funai recebeu mais de 11 milhões para a proteção dos povos indígenas, mas gastou apenas 39% dos recursos.
24 de junho três mães Yanomami reclamam do desaparecimento de seus filhos depois da sua internação por covid-19. A reportagem do El País pode ser conferida aqui.
26 de junho, 15 Ye’kwana da Terra Indígena Yanomami com quadro de covid-19. A suspeita é que tenha chegado no território por meio de garimpeiros ilegais.
8 de julho Bolsonaro aprova com 16 vetos o Plano Emergencial contra covid-19 em terras indígenas. Já falei destes vetos acima.
17 de julho Mulheres de militares maquiam, dão roupas e causam aglomeração de ianomâmis e Mourão sugere que indígenas bebam água dos rios
Não vai ser tão fácil
Com essa linha do tempo acho que fica difícil argumentar que estamos falando de casualidade, de excesso retórico. São ataques insistentes, sistemáticos, encadeados uns aos outros. A omissão é sempre estratégica, nunca um “desvio de rota”. Estamos falando de extermínio – exposição a condições degradantes na tentativa de acabar com a população – e tentativa de genocídio.
A maioria dos povos indígenas já percebeu a intencionalidade, o plano e o método do governo e vem se organizando por fora pra conseguir resistir. Dou alguns exemplos. De acordo com relato de Isa Radler do Isa, “A Campanha Rio Negro Nós Cuidamos do Departamento de Mulheres da Federação de Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) juntou R$220 mil reais e contribuiu inclusive com a compra de equipamento médico para as equipes de saúde indígena. Em um dos momentos de maior tensão, em maio, as equipes não possuíam oxímetros suficientes para ir a campo”. O instrumento é essencial para medir a oxigenação no sangue e diagnóstico da gravidade do paciente de Covid-19. “Soubemos dessa demanda e, por termos recursos da campanha, pudemos proporcionar essa colaboração emergencial imediatamente”, lembrou o presidente da Foirn, Marivelton Barroso, do povo Baré. Foram comprados 12 oxímetros e doados às equipes da linha de frente”.
Já de acordo com Isabel Harari e Silia Moan, “Desde os primeiros casos de contaminação por Covid-19 entre indígenas Kayapó na bacia do Xingu, em maio deste ano, associações dos povos da floresta e seus parceiros se uniram para impedir o avanço da doença. Dois meses depois já são ao menos 15 mortes e 916 casos em Áreas Protegidas na região.
Para frear o avanço da doença foi criado o Grupo Interinstitucional de Enfrentamento a Covid-19 no Xingu. Com reuniões diárias para alinhar estratégias de atuação, a iniciativa desenvolveu o plano de enfrentamento a Covid-19 no TIX, que determina como o novo coronavírus será combatido.
Recém chegada de uma rodada pelas aldeias para atender as comunidades, Daphne Lourenço, médica do Dsei Xingu, reitera a importância do diálogo para o enfrentamento da pandemia. “Se não tivesse esse grupo atuando de forma coletiva, tudo isso se tornaria mais difícil. Esse é o nosso maior aprendizado: aprender a trabalhar juntos com o objetivo de diminuir a mortalidade de Covid-19 no TIX”.
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) deu 15 dias de prazo para o governo elaborar uma estratégia de combate à doença no território indígena Ianomâmi após pressão dos movimentos indígenas, como pode ser conferido melhor aqui.
Esses exemplos de organização mostram que é possível sim sobreviver ao governo quando se tem consciência clara do que ele pretende fazer e que não há terreno a ceder. Há que lutar pelas nossas vidas. E se aliar com esses lutadores que mostram ter criatividade e amplo repertório tático para sobreviver a repetidas investidas do inimigo. Quando formos falar da aceitabilidade da hipótese da imunidade de rebanho, precisamos lembrar sempre desses exemplos de resistência. E que imunidade de rebanho no Brasil é isso que descrevi: tentativa sistemática de extermínio dos povos indígenas. O resultado será um genocídio. Não existe imunidade de rebanho com povos indígenas vivos no Brasil. Eu não estou disposto a pagar esse preço. E vocês?
Victor Hugo Viegas Silva é trabalhador da educação pública da Universidade Federal de Goiás e colaborador de A Comuna, onde tem contribuído com pesquisa, informação e reflexão sobre a pandemia da covid-19.
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